Mãe rara e atípica dribla o isolamento social escrevendo sobre a filha na internet

Antonia

A pandemia chegou na casa da jornalista Maria Karina de Andrade, mãe de Antonia, de 5 anos, impondo mais do que a quarentena e os protocolos de segurança: ela, a filha e o companheiro, o professor Daniel Fontes, tiveram covid-19. Nenhum dos três evoluiu para formas graves da doença, mas foi assustador ver toda a família contaminada com o vírus que já matou mais de 620 mil pessoas no Brasil. 

“Emocionalmente, estamos todos cada dia mais doentes. A covid dá um medo, uma impotência, é uma situação muito delicada, e a perspectiva é de que ainda vai demorar muito, então a gente está se preservando, mas Antonia também não pode ficar tanto tempo sem terapia”, desabafa Maria, que é de Euclides da Cunha, no interior da Bahia, a 323 quilômetros de Salvador.  

Aos sete meses de idade, Antonia foi diagnosticada com Langer-Giedion, síndrome rara que causa deficiências físicas e cognitivas. Aos 3 anos, veio o diagnóstico de autismo. Apesar de ter tido coronavírus, a menina não demonstra perceber os efeitos da pandemia, talvez por sua rotina não ter sido tão alterada. Quando todas as crianças tiveram que deixar as escolas, em 2020, Antonia já tinha saído, um ano antes. Por sugestão da neurologista, a família investe no modelo Denver, terapia comportamental para crianças autistas. 

Com a covid-19, os passeios na pracinha da cidade foram substituídos por viagens para a roça, onde a menina brincava solta, em contato com bichos e com a natureza, mas sem conviver com outras crianças. As idas para Salvador, onde acontece a supervisão e o intensivo da terapia, também ficaram suspensas, e a família tem recebido orientações sobre como conduzir as coisas em casa. 

Além do impacto emocional, Maria conta que teve uma baixa financeira, porque, em casa, foi ela quem parou de trabalhar para se dedicar integralmente à filha. “Ainda assim, sei que somos privilegiados, porque várias famílias com deficiência perderam direitos e benefícios”. Na terapia, Antônia está trabalhando o convívio social, algo que a pandemia tornou limitado para todo mundo. “Estamos avaliando voltar para a escola”, diz a mãe. 

Em um encontro recente e por acaso com dois ex-coleguinhas da escola O Saber, a menina ficou bem à vontade. Antonia, que não se comunica com palavras, disse com o corpo todo o quanto estar com outras crianças a deixou alegre. Por enquanto, ela segue tendo a mãe e o pai como quase as únicas referências e, apesar de Daniel ser presente, ao contrário do que acontece em muitas famílias atípicas, Maria define que, mesmo acompanhada, maternar é solitário, e isso piorou com a pandemia. 

“A maternidade é solitária e sempre vai ser, parece que as mães têm um protocolo de solidão já instalado, como amamentar e uma série de coisas que só nós fazemos. Eu tive e tenho muito apoio de Daniel no meu maternar, um peso que eu considero menor do que outras famílias. Acho que o isolamento social colaborou para deixar muitas mães atípicas ainda mais sozinhas”. 

Na tentativa de diminuir essa distância, Maria escreve seu manual para pessoas imperfeitas, narrando as experiências com Antonia no Instagram, onde “transforma preconceito em potência, luta pelo direito de ser diferente e sonha com um mundo que abrace todas as existências”. Criado em 2015, @mariadeantonia tem 37,7 mil seguidores, para quem a jornalista afirma que maternar é um ato político. No nome do perfil, ela se identifica como é comum no interior, mas forma contrária, de mãe para filha. Em vez de Antonia de Maria, é Maria de Antonia. 

“Ser mãe rara e atípica é um nome social que a gente tem que carregar, porque minha filha ainda é olhada com diferença, não são todas as escolas que a recebem, por aqui, ela ainda é estigmatizada, por isso carrego esse nome, para dizer que ter uma filha com deficiência ainda é estar em um lugar marginal e lutar contra isso todos os dias. Também gosto de ser chamada assim pensando que mães negaram filhos com deficiência, que muitas famílias mataram pessoas com deficiência, então estar nesse lugar de mãe rara e atípica orgulhosamente é uma forma de dizer que a gente existe e é feliz”.  

Mesmo com as angústias e dificuldades amplificadas com a pandemia, Maria consegue ver um lado positivo, que é estar mais tempo com a filha, observando de perto o seu desenvolvimento e acolhendo os seus desafios. Antes da covid-19 e em diversos momentos, ela conta que já se sentiu a pior mãe do mundo.

Isso aconteceu quando foi separada da filha no dia do parto e depois quando a bebê precisou ficar na UTI, quando dependeu de manobras para respirar, quando foi submetida a uma cirurgia no coração ainda tão pequena, quando teve que se alimentar por sonda, quando recebeu os diagnósticos e Maria ainda não sabia que a filha não seria definida por eles ou quando sente os olhares das pessoas na rua voando como flechas na direção de Antonia, pelas características do seu rosto ou pelos dedinhos do pé afastados. 

Maria nunca quis ser mãe, mas queria ser muitas outras vezes a mãe de Antonia, se pudesse escolher. “Tive que me livrar de muito capacitismo dentro de mim, nós somos capacitistas e isso é um trabalho diário. Converso com minha filha, mesmo sem saber se ela compreende, e tento reforçar toda diferença numa fala de beleza. A sociedade precisa das pessoas com deficiência para celebrar o diverso e é por isso que eu luto, para que minha filha seja respeitada em toda a sua diversidade, potência e especificidade. E isso não foi modificado com a pandemia”. 

Não sendo a mãe que esperava, Maria já transitou “do zero ao infinito”. Suas reflexões escritas na pandemia questionam padrões, criticam estereótipos e compartilham situações que possam ajudar outras mães, como a seletividade alimentar severa de Antônia. Por dizer o que pensa, a jornalista já recebeu mensagens aconselhando a não se posicionar politicamente, o que para ela é inegociável. 

“Maternar se torna mais político ainda quando um filho nasce ‘fora do padrão’ estabelecido socialmente. É importante lembrar que a pessoa com deficiência sempre esteve ligada à inferioridade, anormalidade e diferença, o que implica dizer que suas pautas ainda são invisibilizadas e que todos os dias são dias de luta”.