Famílias com crianças foram e são as mais impactadas pela covid-19 no Brasil. Seja pelo isolamento social, pela falta de vínculo com a escola ou mesmo pela insegurança alimentar provocada pela redução de renda em muitos lares do país, a pandemia atingiu diretamente crianças de 0 a 6 anos e suas famílias. A situação é ainda mais complexa para as infâncias atípicas, afastadas também de terapias e de cuidados médicos.
O risco para a primeira infância neurodiversa não é tanto o da contaminação. Estudo publicado na revista Nature mostrou que crianças pequenas representam uma porcentagem mínima de infecções por covid-19, e tendem à forma mais leve ou assintomática da doença. Condições atípicas não são consideradas fatores de risco. Apesar disso, de acordo com o Ministério da Saúde, mais de 300 crianças entre 5 e 11 anos morreram desde o início da pandemia, número que supera 1.400 na faixa etária entre 0 e 11 anos.
O problema maior, apontam especialistas, está na perda de direitos básicos já assegurados às crianças.
“O prejuízo que essas meninas e meninos começaram a ter foi de outra ordem, em todos os ângulos do desenvolvimento, seja cognitivo, emocional, sensorial, relacional, psicomotor e físico, provocados por diversos fatores, dentre os quais, um dos mais tristes, que é a insegurança alimentar e nutricional”. A análise é da psicóloga Cláudia Mascarenhas, fundadora do Instituto Viva Infância, organização social de Salvador (BA) que atende crianças e tem ênfase na prevenção precoce em saúde mental.
De acordo com a pesquisa Impactos Primários e Secundários da covid-19 em Crianças e Adolescentes (Unicef), 13% das famílias brasileiras entrevistadas com filhos de 0 a 18 anos deixaram de comer por falta de dinheiro em algum momento da pandemia. Mesmo com o auxílio emergencial que começou a ser pago pelo Governo Federal em abril de 2020, a redução de renda se mantém como um problema grave no país. Em maio de 2021, 56% dos brasileiros ouvidos pelo Unicef, 89 milhões de pessoas, disseram que o rendimento diminuiu desde o início da pandemia. O impacto continua maior (64%) para quem mora com crianças e adolescentes.
Nas primeiras semanas de covid-19 no Brasil, Cláudia estava otimista, achando que crianças neurodiversas ficariam bem, tanto por correrem menos risco de contágio, quanto por poderem ficar mais tempo com as famílias. O início abrupto da quarentena e o tempo estendido da crise, porém, apontaram para várias questões, como a mudança no cotidiano de crianças autistas, down, surdas, com doenças raras e microcefalia. Para elas, alterar a rotina é sempre um desafio, explica a psicóloga.
Ter que se adaptar a tantas transformações no ambiente restrito da casa, longe do contato presencial com professores, terapeutas, avós e outros adultos de referência, provocou crises e inquietações nas crianças, diz a fundadora do Instituto Viva Infância. “No confinamento, as cuidadoras desses pequenos, que geralmente são mulheres, também acabaram com a saúde mental comprometida, sobrecarregadas e sem apoio, tendo que dar conta de tudo e, em muitos casos, morando em espaços pequenos e com a renda reduzida”.
Uma pandemia dentro da outra
Depois de mais de um ano longe das escolas e das terapias, por vezes sem apoio online de profissionais, Cláudia explica que crianças neurodiversas tiveram prejuízos em relação a estímulos específicos ligados à fala, à motricidade e à interação. De acordo com a psicóloga, todas as crianças tiveram prejuízos em maior ou menor grau, a diferença é que, para as crianças atípicas, a recuperação é mais lenta.
Segundo a especialista, as janelas de oportunidades para as aprendizagens em infâncias neurodiversas podem não ter sido aproveitadas como seriam fora do contexto pandêmico. O fato disso acontecer durante a primeira infância, momento de maiores avanços no desenvolvimento humano, trouxe consequências cognitivas, relacionais e psicomotoras.
Como, além da crise sanitária, o Brasil atravessa uma crise política, social e econômica, os impactos da pandemia em crianças atípicas e suas famílias são mais angustiantes, considera a psicóloga. Em sua avaliação, a falta de planejamento na gestão pandêmica afetou setores essenciais para a garantia de direitos das crianças. “Aqui, vivemos uma pandemia dentro da outra”.
Tomando como base a educação, por exemplo, diversas crianças e suas famílias no país encontraram dificuldades para realizar atividades escolares remotas. Ainda de acordo com estudo do Unicef, 34% por falta de acesso à internet ou baixa qualidade da conexão; 35% por falta de tempo de adultos para acompanhar ou orientar as atividades e 31% por falta de equipamento adequado.
Apesar dos desafios, a psicóloga Cláudia relata experiências bem-sucedidas que aconteceram no Instituto Viva Infância, como o projeto Ateliê Classe. Durante todo o ano de 2020, crianças atípicas e suas famílias tiveram atendimento online, realizados a partir do envio de “kits afetivos”, caixas com propostas de brincadeiras e atividades pedagógicas, além de lanches para as crianças e suas irmãs e irmãos.
Para realizar as propostas trazidas nos kits, muitas vezes o contato pela internet foi substituído por telefonemas e trocas de mensagens via SMS, considerando a realidade mais vulnerável da maioria das famílias atendidas pelo Viva Infância. A entrega dos lanches aconteceu em algumas praças no bairro da Boca do Rio, em encontros marcados com as famílias pela psicóloga Lilia Décia, também fundadora da instituição.
“Não é a mesma coisa do presencial, mas fizemos de tudo para garantir que as crianças não ficassem desassistidas, até porque muitas tinham atendimentos em outros lugares que, com a pandemia, acabaram fechando. Esse contato foi importante para que mantivessem o vínculo e não ficassem paradas durante um ano”, situa Cláudia.
Outra ferramenta criada para apoiar as infâncias atípicas durante a pandemia foi o podcast Papo de Criança. Com a participação de famílias, especialistas e, claro, de crianças neurodiversas, a psicóloga tem publicado episódios que discutem temas como brincadeiras em casa, a importância do cuidado em várias culturas e a diversidade da educação no Brasil.
“Infâncias são diferentes, sejam elas urbanas, indígenas, de matriz africana, quilombolas, rurais, ciganas, e a intenção foi fazer isso circular, tornando invisibilidades visíveis”, afirma a psicóloga. Embora apenas o podcast não mude realidades, ela acredita que “pautar os direitos das infâncias e defender o que cada criança tem de único já é um bom começo”.
Um SUS em si mesmas
As adversidades trazidas pela covid-19 enfatizaram uma realidade histórica no Brasil: o cuidado de crianças atípicas, em sua maioria, ainda está a cargo de mulheres, sejam mães, avós, babás, professoras ou terapeutas. De acordo com pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, realizada pela organização de mídia Gênero e Número em parceria com o coletivo feminista Sempreviva, metade das brasileiras passaram a cuidar de alguém com a chegada do coronavírus.
Esses cuidados, segundo a pesquisa, incluem os próprios filhos de até 12 anos, e também outras crianças, além de idosos e adultos com ou sem deficiência. Para a professora Carla Freitas, do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS), da Universidade Federal da Bahia, o projeto de educar mulheres para tomar conta de crianças e da vida doméstica talvez seja um dos pilares do patriarcado e da violência de gênero.
A responsabilidade quase exclusiva de mulheres por crianças atípicas na pandemia revela também uma submissão estrutural, afirma a pesquisadora. “Como mãe solo e professora de crianças, imagino a casa de um menino autista, por exemplo, que parou de socializar e de trabalhar o simbólico, o que acontece muito na escola, e passou a gritar, a chorar, e o pai, que não estava acostumado, transferiu a questão para a mãe ou pior, ameaçou bater e ir embora”.
Para Carla Freitas, é preciso romper com o estereótipo do cuidado de crianças, principalmente as neurodiversas, sobre as quais os discursos ainda estão cheios de diminutivos e romantizações – a mãezinha, a professorinha, o anjinho azul. Segundo ela, é urgente lutar por projetos de lei para remunerar a vida doméstica, a exemplo do que aconteceu na Argentina, que em julho de 2021, reconheceu o cuidado materno como trabalho, contado como tempo para aposentadoria.
As redes de apoio entre mulheres estavam começando a ser melhor organizadas, mas foram desfeitas com o isolamento social, expondo quem já estava vulnerável, situa Carla Freitas. “Teve quem bancou a babá e acabou colocando todo mundo em risco, mas essa é a minoria. A maioria é de mulheres pretas e periféricas, que muitas vezes são mães solo ou têm que conviver com o agressor, que também faz chantagem psicológica e financeira, algo que é, ao mesmo tempo, gritante e silenciado”.
A psicóloga Cláudia Mascarenhas destaca uma ideia que ouviu durante várias lives das quais participou em 2020: na pandemia, as mães atípicas têm sido um SUS em si mesmas, referência ao Sistema Único de Saúde. “Quantas vezes essas mulheres são o suporte físico, material, psicológico, emocional e espiritual da casa toda, incumbidas de resolverem sozinhas todas demandas de escola, saúde e bem-estar. Pois eu digo a elas: não se sintam culpadas e, se puderem, façam laços com outras mulheres, se organizem. Quando mulheres se unem, uma coisa muito explosiva e revolucionária acontece, e isso é tudo o que o sistema machista não quer”.
Mães X professoras
A sensação é de que a sociedade brasileira deu muitos passos para trás, afirma a educadora Carla Freitas, que responsabiliza o poder público de não priorizar as infâncias, garantir a vacinação antecipada de todos os funcionários da educação e planejar uma reabertura mais rápida das escolas. Na análise de Carla Freitas, uma das consequências da demora na tomada de decisões que garantisse, a um só tempo, a volta à escola e a segurança de crianças e educadores, foi que instâncias normalmente parceiras acabaram em lados opostos.
De um lado, muitas famílias começaram a se movimentar para que as crianças retornassem, seja porque já estavam trabalhando presencialmente, porque os filhos não conseguiram aderir ao ensino remoto ou ainda preocupadas com o tempo que as crianças ficaram distantes umas das outras.
Do outro lado, professores e funcionários das escolas se sentiam inseguros para voltar antes de completar o ciclo de imunização, enquanto a gestão de escolas particulares e a administração pública eram cobradas pela reabertura imediata. “Quem está certo? Todos, menos o que está gerindo essa pandemia, que desconsiderou as necessidades das crianças e de quem cuida delas”, afirma Carla Freitas.
Para a pesquisadora, o momento é de “reorganizar o quilombo, a partir desse novo clã, dos imunizados, e passar a gerir minimamente uma troca com outras mulheres”. Citando o próprio exemplo, Carla acredita que é urgente furar bolhas sociais e apoiar quem está mais vulnerável. “Falo de um lugar de classe média, mas sei que na favela a realidade é de tantas mulheres e mães que nunca puderam fazer isolamento; de crianças que estão na rua desde o início da pandemia; de professoras que botaram cadeira e mesa em beco sem saída para montar uma turma multi-idade, ali, na resistência, em um ato político que jamais será financiado por quem não tem intenção de ver a emancipação de mulheres”.
A estratégia para atravessar a crise deve ser a de atuar em micropolíticas, defende a educadora. “E fazer isso é simples, mas requer mudança de atitude. Que a gente passe a comprar na mão dessas mães, que estão se virando, em lugar de ir para o shopping, por exemplo. Vamos nos aquilombar, nos fortalecer, enfrentar essa estrutura capitalista, circular a economia materna e, com certeza, isso se refletirá nas crianças”.
O outro lado
Questionado pela reportagem se foi feito um levantamento de dados sobre a vida escolar das crianças com deficiência durante a pandemia e sobre possíveis perdas na aprendizagem e/ou no desenvolvimento cognitivo, o Ministério da Educação admitiu problemas e afirmou que não há um levantamento pronto até o momento.
“Acreditamos que houve perda de aprendizagem e que estas perdas atrapalharam o desenvolvimento cognitivo de muitas crianças. Mas, houve também a descoberta de possibilidades de inúmeras famílias que passaram a se envolver, como nunca antes, no processo educacional de suas crianças. O Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Básica (SEB) está realizando estudos nesse sentido.”
O MEC citou algumas ações para crianças com deficiência, como “a formação de professores do Atendimento Educacional Especializado (AEE), […] com 14 cursos de formação continuada aos profissionais, somando 9.650 vagas oferecidas a docentes de todo o Brasil”.
No entanto, ao ser questionado sobre como, na prática, as escolas atenderam os alunos com deficiência no período da pandemia, o MEC afirmou que “o grande número dos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação foram atendidos no conjunto das medidas implementadas para todos os alunos.” Isso após o órgão ter reforçado que “na Educação Especial, das 1.308.900 matrículas, 1.110.504 estão estão matriculados em classes comuns de escolas regulares.”