Em março de 2021, quando as crianças no Brasil completaram um ano de isolamento social, longe da escola, dos professores, dos colegas, dos familiares e das terapias, a psicóloga Ivanna Castro lançou o livro digital “Primeira Infância em Movimento”. Embora não tenha sido idealizado no contexto da pandemia, o projeto estreou em um momento difícil, propondo que os adultos reflitam sobre a relação com crianças pequenas, acessando o tempo das infâncias. O livro tem a colaboração da Avante – Educação e Mobilização Social, instituição baiana da qual Ivanna Castro é consultora associada; do Ateliê Ecoar, espaço carioca de movimento lúdico e arte para bebês e seus cuidadores; e de La Casa Incierta, companhia de teatro hispano-brasileira, pioneira no campo das artes cênicas para este público. “Primeira Infância em Movimento” é resultado da participação de Ivanna no projeto Global Leader For Young Children (Liderança Global pela Primeira Infância). Nesta entrevista, a autora propõe um olhar mais atento às infâncias e afirma que as crianças sugerem transformações, apesar da pandemia.
INFÂNCIAS ATÍPICAS – A proposta do livro é para que os adultos desloquem suas percepções e acessem o tempo da criança pequena. O que, em sua opinião, acontece a partir desse movimento?
IVANNA CASTRO – Infelizmente, com o passar dos anos, vamos esquecendo as nossas memórias da primeira infância e, por vezes, até negando os nossos comportamentos de criança, a cultura adultocêntrica pede isso. Quem nunca ouviu: “Vê se cresce!” e “Deixa de ser criança!”, o que associa a uma conotação carregada de negativismo. Assim, vamos negando a nossa criança interior e sendo cada vez mais adultos, com inúmeras sobrecargas, que são bem vistas pela sociedade. Vamos nos adaptando a um tempo adulto: veloz, de responsabilidades, conectado com o futuro (os dados de aumento da ansiedade estão aí para nos alertar), o que é completamente diferente do tempo da infância, especialmente o da primeira infância. É um tempo sensível, conectado com o presente, com grandes explosões de criatividade, imaginação e inventividade. Com um olhar atento, a criança pequena tem a capacidade de perceber muitas coisas que o adulto em sua rotina deixa passar, e só podemos entender a grandiosidade desse momento se pararmos para observá-lo, para contemplá-lo sem tentar modificá-lo. Acredito que refletir sobre esse deslocamento de perspectiva é essencial quando lidamos com a criança pequena (típica ou atípica), pois isso nos aproxima dela com o respeito e a valorização, que são essenciais para uma boa relação criança-adulto cuidador/educador.
INFÂNCIAS ATÍPICAS – No livro, a psicóloga Ana Marcílio mostra como a criança percorre o caminho evolutivo da humanidade: postura bípede, coluna ereta, movimento de pinças, garatujas, desenhos, fala, imaginação, criação, registro e memória. Quais as especificidades desse percurso em infâncias atípicas e como isso foi afetado pela pandemia?
IVANNA CASTRO – Alguns desses aspectos sobre o percurso da criança pequena podem não se dar da mesma forma em determinadas crianças, uma vez que somos múltiplos e com percursos de desenvolvimento diversos. Ana Marcílio aborda esse trecho numa perspectiva mais geral do desenvolvimento de uma criança de 0 a 6 anos, período das nossas vidas em que se manifestam ações alcançadas com o passar da linha evolutiva humana, como ter a postura bípede, a aquisição do desenho, da fala, etc. A autora ressalta esses aspectos para reforçar quantas coisas acontecem nos primeiros 6 anos de uma criança, ações que demoramos milhares de anos para adquirir, o que mostra o quanto é uma fase importantíssima para o nosso desenvolvimento posterior e quanta evolução há nesse período que chamamos de primeira infância. Sem dúvida, o isolamento provocado pela pandemia afetou o desenvolvimento e a saúde mental das crianças. Recentemente, li um estudo realizado na China que avaliou os efeitos mais imediatos da pandemia no desenvolvimento psicológico de crianças e adolescentes. Surgiram muitos problemas emocionais e comportamentais, como irritabilidade, medo de que as pessoas da família fossem contaminadas, dependência excessiva dos familiares, perturbação do sono e pesadelos, falta de apetite e agitação. É importante destacar que as repercussões da pandemia podem ser ainda mais impactantes em crianças que têm alguma doença mental ou física. Sem dúvida, todos nós estamos sendo, de alguma maneira, afetados com a nova conjuntura, mas com as crianças, o impacto talvez seja ainda maior, e aqui aproveito para destacar que os resultados negativos não são somente relacionados às questões provocadas pelo isolamento e à falta de socialização para a aquisição de repertórios comportamentais diversos, mas também pelo impacto socioeconômico na vida de muitas delas. Dados do Observatório do Marco Legal da Primeira Infância revelaram que, em 2019, praticamente metade das crianças brasileiras de 0 a 5 anos se encontrava em situação de pobreza, e isso é um problema que se agravou bastante com a pandemia. A pobreza está novamente em crescimento no Brasil, e as crianças estão ainda mais vulneráveis a outras problemáticas para além dessas que a falta de socialização e das escolas podem causar.
INFÂNCIAS ATÍPICAS – Como é promover essa aproximação entre o tempo adulto e o de crianças pequenas de forma poética em um cenário como o do Brasil, onde morreram mais de 600 mil pessoas e onde a crise social, econômica e política deixam as famílias atípicas ainda mais vulneráveis?
IVANNA CASTRO – O cenário brasileiro é muito desmotivador, traumático e hostil, especialmente para as crianças pequenas, dignas de entusiamos, de sutilezas e de muita vida, algo completamente oposto ao que estamos atravessando. Apesar disso tudo, as crianças nos apontam que é possível mudar e transformar, que novas descobertas fazem parte da vida humana, o que para mim, especialmente, traz uma energia de esperança, de desejo de mudança e de ação, pois as crianças também são muito ativas. Acho que observar o que cada criança tem a ensinar ao adulto é uma porta aberta a esse encontro, a essa aproximação. Espero que as famílias, principalmente as mais afetadas com a pandemia, possam ter essa força e caminhem juntas com suas crianças para a superação deste momento. Não esqueçamos que iniciamos o período deste governo com o lema: “Ninguém solta mão de ninguém”, não vamos jamais soltar a mão das nossas crianças.
INFÂNCIAS ATÍPICAS – Como você vê hoje o papel da casa e da escola, quase dois anos do início da pandemia e com o retorno das atividades presenciais?
IVANNA CASTRO – Com a pandemia, de repente nos vemos questionar e ressignificar o papel desses dois espaços, escola e casa. Percebemos que o ambiente doméstico não só tem o papel de acolher as crianças em seu tempo livre, mas que pode, sim, se transformar em um ambiente pedagógico com grande potencial, e da mesma forma, a escola, cujo papel vai muito além de um local apenas para aquisição de conhecimentos, ao contrário, é uma instituição que tem função social importantíssima e que deve cumprir essa função, de educação integral, solidária, para a cidadania e conectada com as necessidades de sua comunidade. Percebemos também a força dessa união entre ambiente doméstico e escolar, de como devem caminhar juntos nos cuidados e educação das crianças. Na pandemia, fomos de um extremo a outro: escolas fechadas e casas sobrecarregadas, isso não é o cenário ideal, mas nos deu abertura para perceber que certas adaptações de rotinas que tivemos de fazer, podem e devem ser ajustadas ao contexto pós-pandêmico, porque toda experiência árdua e nova que o mundo está atravessando deve ser alicerce para muitos aprendizados. A forma como muitos pais e mães lidam com suas crianças mudou, o tempo de convivência foi ampliado e, este último aspecto, foi muito positivo. Pude ouvir de algumas crianças que o que mais gostaram desse período foi passar mais tempo com os pais, poder brincar mais com eles, por isso acredito que as experiências positivas que vivemos não deveriam ser esquecidas.