Quando o ano letivo de 2022 começar, Lara Vaz vai entrar no Ensino Fundamental, que ela inaugura com uma experiência inédita na bagagem: ter atravessado o primeiro ano da pandemia sendo a única criança do seu grupo a ter concluído as experiências remotas. De uma turma com 11 crianças, Lara foi a que seguiu pelo computador até o fim. Era também a única atípica.
A menina de 6 anos, que tem microcefalia, inicia uma nova fase em sua educação, com o amadurecimento vindo de sua permanência na escola, resultado de uma soma de vontades – a dela, a dos educadores e a da mãe. A pedagoga Catiane Vaz lembra que a expectativa para 2020 era de que a filha pudesse viver plenamente a Gira Girou, escola particular de Salvador onde estava matriculada desde 2019, mas que frequentou com restrições por causa de uma cirurgia no quadril. O plano para 2020 era fazer o Ciclo II outra vez, de forma mais presente.
Mas a presença foi justamente uma das primeiras interdições que Lara e todas as outras crianças tiveram ainda em março, data em que as escolas baianas fecharam as portas e abriram as telas, evitando que as aulas fossem suspensas. Para Catiane, que trabalhava como professora do grupo 3 em uma escola municipal, começava mais um tempo difícil, que incluía administrar terapias à distância.
“Eu não suporto nada online, nunca gostei, e de repente me vi tendo que gravar videoaulas para as minhas crianças enquanto precisava cuidar de Lara nas atividades dela. Eu tive que ser professora, dona de casa, cozinheira, terapeuta e babá, tudo ao mesmo tempo. Estava estressada, cansada e tendo muitas crises de choro, com medo de fazer algo errado, de não dar conta”, desabafa.
Um dos maiores desafios foi conduzir as terapias da filha a partir de planejamentos que recebia de uma equipe multidisciplinar. Sem intimidade com a área de saúde, Catiane apelou para o instinto de mãe e, durante cinco meses, foi a fisioterapeuta, fonoaudióloga, terapeuta ocupacional e musicoterapeuta de Lara, seguindo orientações da clínica, postadas em um aplicativo e avaliadas por telefone a partir dos vídeos que ela gravava a cada sessão.
Catiane chegou a ponderar se Lara não precisava mais da reabilitação do que da escola, pois nessa época, a menina estava convalescendo da segunda cirurgia no quadril e sentia muitas dores. Em agosto de 2020, as duas se mudaram para a mesma rua da clínica e tiveram que esperar até julho de 2021 para retomar os atendimentos presenciais.
Foi o pai de Lara, o geógrafo Jônatas dos Santos, quem insistiu para que a filha continuasse frequentando as aulas, embora ele não estivesse disponível para dividir a responsabilidade. Catiane e Jônatas nunca foram casados, namoravam quando ela teve zika na gravidez e Lara nasceu, mas não chegaram a morar juntos. No começo da pandemia, tempo de “profundo desânimo e cansaço”, Catiane aceitou essa outra tarefa, de acompanhar as propostas pedagógicas e as assembleias virtuais das crianças com a professora uma vez por semana.
A psicóloga Gisela Tapioca, que estava na coordenação da educação infantil, sugeriu que Catiane entrasse nas aulas junto com Lara, tarefa que só foi possível com o apoio da babá, Islane Silva. Então, a mãe, que não gostava de telas, e a filha, que vivia condições desconhecidas pelas outras crianças da turma – como não andar e não falar – atravessaram 2020 com dificuldade, insistência, yoga, música e tiveram a documentação desse percurso premiada nacionalmente, concluindo um ano letivo de forma inédita.
‘Lara me ajudou a crescer’
As experiências de Lara no ensino remoto foram contempladas no edital “Rastro: Narrativas do cotidiano”, do ateliê Binah, instituição de São Paulo que atua nas áreas de educação e arte. A série de mini-histórias “Voa Borboleta”, “O Sorriso” e “A Brisa e os Cataventos” foi uma das 13 escolhidas entre mais de 40 inscrições de todas as partes do Brasil contando as experiências vividas em meio ao turbilhão da covid-19.
A professora Marcelle Moreira passou 2020 propondo atividades com texturas, músicas e movimentos, que despertaram o interesse da menina no ambiente virtual. “Lara se comunica pelas emoções, o corpo dela mostra os sentimentos e isso foi um termômetro para dar continuidade ao que a gente estava desenvolvendo”, diz a autora de textos cheios de sutilezas, como a reação de riso e choro da criança diante do simples toque de um sino.
O sino era da aula de yoga, onde Lara mexeu o corpo, ouviu música, respirou fundo e conheceu histórias com muitas onomatopeias. O professor Jorge Ferreira se emociona ao lembrar: “Não imaginava que a presença dela nos permitiria viver algo tão profundo diante das telas. Eu saía de cada vivência chorando e rindo junto com Lara, que me ajudou muito a crescer, a olhar para as diferenças de forma ainda mais cuidadosa”.
A gestora e fundadora da escola, Andréa Alves, cita o projeto político pedagógico, que marca o direito de crianças atípicas à acessibilidade social e permanência no ensino regular. “Mesmo com todos os desafios, vividos organicamente, apostamos nas crianças estarem mais próximas da escola, nunca dentro, porque faltava a presença, mas elas estiveram perto dos educadores, das brincadeiras, das relações e assim, puderam cobrir um pouco a saudade da vida que ainda não podia ser vivida”. Para Andrea, a parceria com a família permitiu que Lara vivesse muitos voos, mesmo pelo computador. “E foi lindo, depois disso, ela retornou ao presencial e atestamos o quanto foi importante tudo o que aconteceu remotamente”.
O fato de já terem tido contato presencial, ainda que por pouco tempo, ajudou na conexão entre Lara e os professores, observa a coordenadora Gisela Tapioca, que orientou as escritas da professora em formação durante todo o ano letivo. “Marcele não se embaraça diante da diferença, ao contrário. Essa relação foi sendo construída aos poucos, a professora inventando brincadeiras, explorando outros usos para a câmera, como se pudesse fazer da máquina uma parede mais porosa”, situa a psicóloga, que vê a adaptação como um processo dinâmico e contínuo. “As crianças não têm medo de encarar o mistério”.
Retornar para seguir
Voltar para a escola, mesmo com a variante ômicron, pode não ser tão difícil depois de Lara ter passado 18 meses em casa, e de Catiane ponderar sobre “o novo normal”, expressão dessa pandemia. O retorno em 2021 teve o acolhimento dos mesmos professores e uma interação imediata com as outras crianças, inclusive as novatas. “Lara foi recebida com muito carinho e eu vejo que o que conquistamos de forma remota só fortalece o que vivemos agora. Ela participa de tudo, tem uma entrega muito especial. No difícil ano de 2020, essa menina foi a pessoa que mais me inspirou”, conta a professora.
Catiane sabe que parte dessa conquista é resultado de uma dedicação ininterrupta – e tantas vezes solitária – há seis anos. Do “mundo que desabou” no diagnóstico de Lara até ver a filha feliz na escola, apesar de a pandemia ainda não ter acabado, foram muitos acontecimentos: a morte do pai, o fim do relacionamento, as comparações, os quatro anos que passou sem conseguir ser professora de crianças e o início do ativismo pela educação inclusiva.
Em 2015, ela passou a fazer parte da Associação de Mães da Microcefalia, onde descobriu que não devia aceitar muita coisa, como perder uma seleção de trabalho porque contou que a filha tem essa condição. “Nós, mães atípicas, vivemos brigando com todos para impor respeito: educadores, família, planos de saúde. Mas é assim que a gente se fortalece”.
A reportagem encontrou Lara presencialmente na escola e confirmou o que foi dito por todos os adultos que cuidam dela. Teve riso-choro nas aulas de yoga e música, a mãozinha fina segurando um punhado de terra em atividade na horta, ou desenhando planetas inventados por crianças. Em cada expressão, era como se dissesse algo que, em 2022, é o que todos queremos ouvir : “Está passando, vai ficar tudo bem”.